terça-feira, 7 de setembro de 2010

RESENHA: Neuromancer, de William Gibson

*Marcus Vinícius Freitas

“O céu do porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar.”
 
Desde o momento em que passamos de uma célula para um desajeitado amontoado delas, estamos em evolução. Darwin descreveu muito bem isso. Desde que viramos homo sapiens, a humanidade experimenta uma ascendência tecnológica, da pedra lascada até a prensa de Guttemberg. Porém, foi no século XVIII que tal evolução deu um significativo salto com o estabelecimento da revolução industrial. Desde então, o progresso alcançado foi extremamente superior do que nos milhares de anos passados. Se há alguns séculos se demorava anos para imprimir um livro, hoje é possível visitar qualquer lugar através de um clique no computador, ou então fazer uma videoconferência pelo celular com alguém a milhares de quilômetros de distância. A este processo damos a denominação de pós-modernidade.

Nascido entre o high-tech e a subversão cultural, o Cyberpunk é um dos, senão o movimento artístico mais inserido na temática pós-moderna. Descendente da ficção científica, o termo é designado para descrever a soma da cibernética, futurismo, do techno e da robótica - e da ficção científica propriamente dita - com o ideal niilista, autônomo e sarcástico do punk. Essa mescla influenciou de um modo bem peculiar a música, a moda, a filosofia e os estilos gerais do movimento. Porém, tudo começou na literatura, com a obra que pode ser considerada o marco zero do movimento: Neuromancer. Escrito em 1984 pela mente visionária de William Gibson, o livro é considerado a bíblia do cyberpunk.

Neuromancer é ambientado em Sprawl, um mega-conglomerado de metrópoles e cidades como BAMA e Chiba City. O protagonista é Case, um ex-comboy da Matrix que sobrevive fazendo pequenos roubos para sustentar seu vício em octágonos (metanfetaminas). Cowboy é um termo similar a hacker, enquanto que Matrix é um ¬

espaço virtual real, acessado através de conexões físico-cerebrais. Isto é, é o ciberespaço real. Case foi banido por ter sido pego roubando, e foi neurologicamente mutilado para nunca mais trabalhar na Matrix. Ele encontra Molly, uma espécie de agente - uma “samurai das ruas” -, que lhe oferece um trabalho e a chance de retornar ao Matrix, ou seja, lhe curar. Molly vai a mando de Armitage, um homem misterioso que está preparando uma missão especial acerca de Matrix.

Vale lembrar que a ficção científica começou a adquirir um status mais profético desde que Júlio Verne descreveu a chegada do homem na lua com grande proximidade à missão Apolo décadas antes. Tempo depois, George Orwell, Aldous Huxley e Anthony Burgess formariam a santíssima trindade da ficção, lançando respectivamente 1984, Admirável Mundo Novo e Laranja Mecânica. Porém, o trio foca num lado mais sociológico, numa discussão mais filosófica e existencialista acerca do ser humano. Paralelamente, Philip K. Dick desenvolveria eternos clássicos do gênero, mas teria o merecido reconhecimento e o status cult somente anos após sua morte. É neste contexto que Gibson se insere, mas suas obras são mais voltadas mais dinâmicas - Neuromancer é um romance sci-fi que mistura desde aventura a suspense - e voltadas para o lado tecnológico.

Os avanços tecnológicos, a coexistência entre o humano e não-humano estudada por teóricos como Massimo Canevacci e Jean Baudrillard estão mais que presente no livro de Gibson e no cyberpunk em si. Existem centenas de exemplos da “coisificação” do homem no livro - próteses mecânicas, drogas sintéticas, displays acoplados diretamente na pele, enxertos mecânicos de órgãos, reconstrução neural, etc. -, claro que algumas ainda não saíram do campo da ficção, porém outras já estão no nosso cotidiano, como o celular e a portabilidade da internet, coisas que outrora foram apenas imaginação. Canevacci vê esse processo de forma benéfica, concordando categoricamente com a frase de Marshall McLuhan: “os meios são as extensões do homem”. Já Baudrillard discorda. De acordo com sua opinião, esse processo é algo perigoso, que pode inverter os papéis, humanizando as coisas, assim colocando o ser humano de lado.

Um exemplo disso é Matrix (Irmãos Wachowski, 1999), que pelo título já se nota a influência de Neuromancer. A idéia de um espaço virtual que simule a realidade, de conexões cerebrais interagindo fisicamente a um ciberespaço fora baseada nele. Aqui, temos a coisificação humana vista de um modo malígno, já que na trama os robôs tomam conta da humanidade. O que sobrou do mundo é dominado pelas máquinas. Humanos não nascem mais, são cultivados como forma de energia para os robôs em intermináveis campos. A humanidade fica em um estado subconsciente, imersa na Matrix, que é nada mais que um ciberespaço que simula o mundo em todas as suas formas, cores, cheiros, emoções e sensações, só que de maneira virtual. Além de Neuromancer, a alegoria da caverna de Platão - questão da realidade, do que conhecemos como real e o que seria a verdadeira realidade - e teoria de Baudrillard acerca da “coisificação” também se fazem presentes no filme.

Outro exemplo que se assemelha muito com Neuromancer, mas no quesito ambientação, é Blade Runner: O Caçador de Andróides, de Philip K. Dick, escrito em 1966. Não seria errado dizer que a BAMA é inspirada na Los Angeles que Dick descreve em seu livro, cidade que Ridley Scott dá vida de forma fenomenal em Blade Runner, filme de 1982. Um clima noir, uma metrópole sombria, nebulosa, cheia de luminosos arranha-céus, o contraste entre naves sobrevoando e o submundo, a periferia estabelecida em sua base. Diga-se de passagem, Dick é um dos maiores escritores que já pisaram na terra. Ele deu novos rumos à ficção científica e sua vasta obra pode ser conferida tanto na literatura quanto nas adaptações de seus contos para a telona (Minority Report, O Homem Duplo, O Vingador do Futuro e mais recentemente O Vidente).

Neuromancer será lido, relido, discutido, estudado, adaptado para os cinemas - 2011 é a previsão de lançamento de sua produção cinematográfica -, quadrinhos, games, enfim, em todas as mídias relevantes que se têm notícia. Um marco na ficção científica, um marco para um novo movimento, Gibson adianta um pouco do futuro profetizando certas inovações tecnológicas e discussões de cunho filosófico. Aos leitores assíduos e fãs do gênero sci-fi, uma coisa é certa: após o contato com Neuromancer, um céu nublado nunca mais será visto do mesmo jeito.

* Acadêmico do Quarto Nível do Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, pela Universidade de Passo Fundo. E-mail: marcusvinifreitas@hotmail.com